domingo, 5 de abril de 2015

A Herdeira Capítulo 3


DECIDI JANTAR NO QUARTO. Não estava a fim de ver minha família no momento. Estava furiosa com todos eles.
Com meus pais, por serem felizes; com Ahren, por não ter sido rápido o bastante dezoito anos atrás; com Kaden e Osten, por serem tão jovens.
Neena deu a volta na mesa para me servir.
— A senhorita acha que vai ter que aceitar? — perguntou ela ao encher minha taça.
— Ainda estou pensando em um jeito de escapar.
— E se a senhorita dissesse que já está apaixonada por alguém?
Neguei com a cabeça enquanto brincava com a comida.
— Insultei os três candidatos mais prováveis bem na frente deles.
Neena então pôs um pratinho com chocolates no meio da mesa, supondo – corretamente – que eu estaria mais interessada neles do que no salmão com caviar.
— Talvez um guarda, então? Acontece bastante com as criadas — ela sugeriu, rindo.
— Tudo bem para elas, mas não estou tão desesperada assim — desdenhei.
A risada de Neena cessou.
Percebi imediatamente que minhas palavras a haviam ofendido. Mas era verdade: eu não podia ficar com qualquer um, muito menos um guarda. Pensar naquela possibilidade já era perda de tempo.
Eu precisava de uma saída para aquela situação.
— Não disse por mal, Neena. Acontece que as pessoas esperam certas coisas de mim.
— Claro.
— Já terminei. Você está dispensada pelo resto da noite. Deixarei o carrinho com os pratos no corredor.
Ela fez que sim com a cabeça e saiu sem dizer mais uma palavra.
Belisquei os chocolates, mas logo desisti de comer qualquer coisa e vesti a camisola. Não podia argumentar com meus pais naquele momento, e Neena não me entendia. Precisava falar com a única pessoa capaz de entender o meu lado, a pessoa que às vezes parecia minha outra metade. Eu precisava falar com Ahren.


— Está ocupado? — perguntei, entreabrindo sua porta.
Ahren estava sentado à escrivaninha fazendo anotações. Seus cabelos loiros estavam aquela bagunça típica do fim do dia, mas seus olhos não tinham qualquer vestígio de cansaço. Parecia-se tanto com nosso pai quando jovem que chegava a ser assustador. Ele ainda estava com a roupa do jantar, mas já havia tirado o paletó e a gravata, preparando-se para dormir.
— Faça o favor de bater antes de entrar.
— Eu sei, eu sei, mas é uma emergência.
— Então arrume um guarda — ele retrucou e voltou à papelada.
— Já sugeriram isso — disse para mim mesma. — É sério, Ahren. Preciso da sua ajuda.
Meu irmão me olhou por cima do ombro, e pude notar que estava prestes a ceder. Com ar despreocupado, empurrou a cadeira ao seu lado com o pé e disse, irônico:
— Venha até meu escritório.
Ao sentar, perguntei:
— O que você está escrevendo?
Ele tratou de cobrir a folha rapidamente com outros papéis.
— Uma carta para Camille.
— Você sabe que pode simplesmente ligar pra ela.
Ele deu um sorrisinho e comentou:
— Mas eu vou ligar. E também vou mandar isto.
— Não faz sentido. O que tanto você tem para dizer que precisa de uma ligação e uma carta?
Ele balançou a cabeça.
— Para a sua informação, os dois têm propósitos diferentes. As ligações são para as notícias e para saber como foi o dia dela. As cartas são para coisas que nem sempre posso dizer em voz alta.
— Sério? — perguntei, já me inclinando para pegar o papel.
Antes que pudesse chegar perto, a mão dele grudou no meu punho.
— Eu mato você — ele garantiu.
— Ótimo — disparei. — Aí você vira o herdeiro, passa pela Seleção e dá um beijo de despedida na sua preciosa Camille.
Sua testa se encheu de rugas.
— O quê?
Soltei o corpo de novo na cadeira.
— A mamãe e o papai querem levantar o moral do povo. Decidiram isso pelo bem de Illéa — eu disse com um patriotismo sarcástico. — Preciso passar pela Seleção.
Eu esperava uma demonstração de horror abjeto. Talvez uma mão simpática sobre meu ombro.
Mas Ahren jogou a cabeça para trás e caiu na gargalhada.
— Ahren!
Ele continuava urrando, dobrando-se para a frente e dando tapas no joelho.
— Você vai amassar a roupa — avisei, o que só aumentou as risadas. — É sério, pelo amor de Deus! O que eu devo fazer?
— Como se eu soubesse! Não acredito que eles realmente acham que isso vai funcionar — ele acrescentou sem parar de rir.
— O que isso quer dizer?
Ele deu de ombros.
— Não sei. Acho que sempre pensei que, se algum dia você se casasse, seria em um futuro bem distante. Acho que todo mundo tinha certeza disso.
— E o que isso quer dizer?
O toque de carinho que eu esperava finalmente veio quando ele pegou minha mão.
— Ah, Eady. Você sempre foi independente. É a rainha em você. Gosta de estar no comando, de fazer as coisas por conta própria. Eu imaginava que só iria se unir a alguém depois de reinar por um tempo.
— Para começo de conversa, não tive muita escolha — resmunguei, abaixando a cabeça mas com os olhos ainda em meu irmão.
Ele fez uma careta e emendou:
— Pobre princesinha. Então você não quer governar o mundo?
Afastei a mão dele com um tapa.
— Sete minutos. Devia ter sido você. Eu preferia mil vezes ficar sentada sozinha escrevendo bobagens em vez de lidar com toda a burocracia. E essa história ridícula de Seleção não faz o menor sentido! Você não vê como é lamentável?
— Aliás, como enfiaram você nisso? Pensei que tinham abolido a Seleção.
— Não tem nada a ver comigo — respondi com cara de tédio. — Essa é a pior parte. O papai tem enfrentado muita oposição, por isso vai tentar distrair as pessoas.
Antes de continuar, balancei a cabeça.
— A situação está ficando feia, Ahren. Estão destruindo casas e lojas. Já houve algumas mortes. O papai não sabe ao certo de onde vêm os ataques, mas acha que as pessoas da nossa idade, da geração que cresceu sem as castas, têm provocado a maior parte deles.
Uma expressão de dúvida apareceu no rosto dele.
— Não faz sentido. Por que crescer sem aquelas restrições deixaria alguém com raiva?
Fiz uma pausa para pensar. Como explicar algo que não passava de uma hipótese para mim?
— Bom, fui criada com todos me dizendo que eu seria a rainha um dia. Era isso. Nada de escolhas. Você cresceu sabendo que tinha opções. Podia entrar para o exército, virar embaixador, podia fazer um monte de coisas. Mas e se isso não acontecesse na prática? E se você não tivesse todas as oportunidades que imaginava antes?
— Hum… — ele disse, mostrando que seguia o raciocínio. — Então eles não têm acesso a empregos?
— Empregos, educação, dinheiro. Ouvi falar de gente que proíbe o casamento dos filhos por conta das velhas castas. Nada está acontecendo do jeito que o papai planejou, e é quase impossível controlar esses movimentos. Será que dá para forçar as pessoas a serem justas?
— É isso que o papai está tentando resolver agora? — Ahren perguntou, cético.
— Sim. E eu sou o show de ilusionismo que vai distrair as pessoas enquanto ele elabora um plano.
Ahren achou graça.
— Essa explicação faz bem mais sentido do que você ter virado romântica de repente.
Ergui a cabeça.
— Já deu, Ahren. Eu não estou interessada em casar. Por que isso importa? Outras mulheres podem ficar solteiras.
— Mas ninguém espera que outras mulheres produzam um herdeiro.
Dei outro tapa nele.
— Me ajude! O que eu faço?
Seus olhos procuraram os meus. Percebi, com a facilidade que tinha para saber o que ele sentia, que finalmente entendeu que eu estava aterrorizada. Não irritada ou zangada. Não ultrajada ou enojada.
Eu estava com medo.
Uma coisa era a expectativa de que eu comandasse o país, de que carregasse o peso de governar milhões de pessoas sozinha. Tratava-se de um emprego, uma tarefa. Eu podia riscar itens de uma lista, delegar. Mas casamento era muito mais pessoal, outro pedaço da minha vida que deveria ser meu, mas aparentemente não era.
O sorriso brincalhão de meu irmão desapareceu e ele arrastou a cadeira para perto da minha.
— Se a ideia é distrair as pessoas, talvez você pudesse sugerir outras… oportunidades. Um possível casamento talvez não seja a única alternativa. Por outro lado, se nossos pais chegaram a essa conclusão, devem ter esgotado todas as outras opções.
Enterrei a cabeça nas mãos. Não queria contar a Ahren que sugeri que ele se casasse, nem que considerei até Kaden viável. Tinha a sensação de que meu irmão estava certo; a Seleção era a última esperança dos meus pais.
— Eis o ponto, Eady. Você será a primeira garota a assumir o trono por direito. E as pessoas esperam muito de você.
— Como se eu já não soubesse.
— Mas — ele prosseguiu —, isso lhe dá bastante poder de barganha.
Levantei um pouco a cabeça.
— Como assim?
— Já que você precisa mesmo fazer isso, tente negociar.
Me endireitei na cadeira. Pensei e repensei, tentando imaginar o que poderia pedir. Talvez houvesse um jeito de passar logo por aquilo, sem ter que acabar com um pedido de casamento.
Sem pedido de casamento!
Se eu falasse rápido o bastante, provavelmente conseguiria que meu pai concordasse com praticamente qualquer coisa, desde que ele tivesse sua Seleção.
— Negociar! — balbuciei.
— Exatamente.
Levantei, agarrei Ahren pelas orelhas e estalei um beijo em sua testa.
— Você é meu herói absoluto!
Ele sorriu.
— Qualquer coisa por você, minha rainha.
Ri e o empurrei.
— Obrigada, Ahren.
— Mãos à obra — ele falou, apontando para a porta. Suspeitei que estava mais ansioso para voltar à carta do que para acompanhar meu plano.
Saí correndo do quarto dele em direção ao meu para pegar papel. Precisava pensar.
Quando virei a esquina do corredor, trombei com alguém e caí sentada no carpete.
— Ai! — reclamei. Ao erguer os olhos, dei com Kile Woodwork, filho da madame Marlee.
Kile e o resto da família Woodwork possuíam aposentos no mesmo andar que a nossa, uma honra muito especial. Ou irritante. Dependia da opinião que se tinha sobre os Woodwork.
— Com licença — eu disse, ríspida.
— Não era eu que estava correndo — ele replicou, recolhendo os livros que tinha derrubado. — Precisa olhar por onde anda.
— Um cavalheiro estenderia a mão imediatamente — disse a ele.
O cabelo de Kile cobriu seus olhos quando se voltou para mim. Ele precisava desesperadamente cortar o cabelo e fazer a barba. Além disso, sua camisa estava grande demais. Não sei de quem eu sentia mais vergonha: dele, pela aparência tão desleixada, ou da minha família, que tinha de ser vista com aquele desastre.
O mais irritante era que ele nem sempre tinha sido tão esculachado, nem precisava ser. Qual a dificuldade de passar uma escova no cabelo?
— Eadlyn, você nunca me considerou um cavalheiro.
— Verdade — concordei, enquanto me levantava sozinha e batia o pó do roupão.
Eu havia sido poupada da companhia pouco empolgante de Kile nos últimos seis meses. Ele fora a Fennley se matricular em algum curso intensivo, e sua mãe lamentara sua ausência desde o dia de sua partida. Eu não sabia o que ele estudava nem fazia questão de descobrir. Mas ele estava de volta, e sua presença era mais um fator de estresse numa lista que não parava de crescer.
— E o que faria uma dama como você correr desse jeito, afinal?
— Assuntos que você é tosco demais para compreender.
Ele riu.
— Certo, porque sou tão simplório. É um milagre conseguir tomar banho sozinho.
Eu estava prestes a perguntar se ele realmente chegava a tomar banho, porque a impressão era de que ele fugia de qualquer coisa semelhante a um sabonete.
— Espero que um desses livros seja um manual básico de etiqueta. Você precisa se atualizar urgentemente.
— Você ainda não é rainha, Eadlyn. Baixe um pouco a bola.
Ele se afastou, e fiquei furiosa por não ter dado a palavra final.
Segui adiante. Minha vida agora tinha problemas maiores que as boas maneiras de Kile. Não podia desperdiçar meu tempo discutindo com as pessoas ou me distraindo com qualquer coisa que não desse fim à Seleção.

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