domingo, 1 de março de 2015

A Herdeira Capítulo 4


— QUERO SER CLARA — eu disse ao sentar diante da mesa do meu pai. — Não tenho intenção de me casar.
Ele fez que sim com a cabeça e começou a falar:
— Entendo que você não queira isso hoje, mas um dia vai precisar se casar, Eadlyn. Você tem a obrigação de dar continuidade à linhagem real.
Eu odiava quando ele falava assim do meu futuro. Como se sexo, amor e bebês não fossem coisas boas, mas deveres a ser cumpridos para manter o país nos eixos. Isso apagava qualquer traço de alegria das minhas perspectivas.
De todas as coisas da vida, essas não deveriam ser as melhores partes, os prazeres mais verdadeiros?
Afastei essa preocupação e me concentrei no objetivo que tinha naquele momento.
— Entendo. Concordo que é importante — repliquei diplomaticamente. — Mas durante a sua Seleção você nunca se preocupou com a possibilidade de que ninguém do grupo fosse a garota certa? Ou de que talvez muitas estivessem lá pelos motivos errados?
Seus lábios esboçaram um sorriso.
— Eu me preocupava com isso todos os dias e boa parte das noites.
Então ele me contou várias histórias vagas sobre uma garota tão dócil que ele mal podia suportá-la e também sobre outra que tentara manipular cada etapa do processo. Eu não conhecia muitos nomes ou detalhes, e nem fazia questão. Nunca gostei de imaginar que meu pai poderia ter se apaixonado por outra garota que não a minha mãe.
— E você não concorda que, como serei a primeira mulher a assumir o controle total da coroa, é necessário estabelecer alguns… padrões a respeito de quem pode governar ao meu lado?
— Continue — disse ele, inclinando a cabeça.
— Imagino que com certeza deve existir algum sistema de cortes pronto para evitar que um psicopata consiga entrar no palácio, certo?
— Claro — ele confirmou com um sorriso, como se a minha preocupação não fosse válida.
— Acontece, porém, que não confio em ninguém para assumir o cargo comigo. Portanto — suspirei fundo antes de continuar —, concordo em passar por esse espetáculo ridículo se você me prometer algumas coisinhas.
— Não é um espetáculo. Tem um histórico excelente. Mas por favor, minha querida, diga-me o que quer.
— Primeiro, quero que os concorrentes tenham liberdade para partir por vontade própria. Não quero que ninguém fique aqui obrigado se não gostar de mim ou da vida que levará no palácio.
— Concordo plenamente com isso — meu pai disse, decidido. Aparentemente pus o dedo em alguma ferida.
— Excelente. E sei que você talvez se oponha à ideia, mas se no fim eu não encontrar ninguém adequado, cancelamos tudo. Nada de príncipe, nada de casamento.
— Ah! — ele disse, se inclinando para a frente na cadeira e apontando um dedo precavido para mim. — Se eu permitir isso, você vai rejeitar todos no primeiro dia. Não vai nem tentar!
Fiz uma pausa para pensar.
— E se eu lhe garantisse um prazo? Eu deixaria a Seleção correr por, digamos, três meses, e consideraria as opções pelo menos por esse período. Depois disso, se não tiver encontrado uma pessoa adequada, dispenso todos os concorrentes.
Meu pai passou a mão no rosto e se revirou um pouco na cadeira antes de cravar os olhos nos meus.
— Eadlyn, você sabe o quanto isso é importante, não sabe?
— Claro — respondi no ato, com plena consciência da seriedade do assunto. Tinha a sensação de que um passo errado colocaria minha vida em uma rota que eu jamais poderia corrigir.
— Você precisa fazer isso e precisa fazer bem. Em nome de todos. Nossas vidas, todas elas, estão a serviço de nosso povo.
Desviei o olhar. Para ser sincera, minha sensação era de que minha mãe, meu pai e eu formávamos o trio a ser sacrificado, enquanto os outros faziam o que bem entendiam.
— Não vou desapontá-lo — prometi. — Faça o que precisa fazer. Elabore seus planos, encontre uma maneira de aplacar nosso povo e eu lhe darei tempo suficiente para organizar tudo.
Meu pai olhou para o teto, pensativo, antes de responder.
— Três meses? E você promete que vai tentar?
Levantei o braço em juramento.
— Dou minha palavra. Até assino um documento se você quiser, mas não posso prometer que vou me apaixonar.
— Eu não teria tanta certeza se fosse você — ele disse como quem sabe das coisas.
Só que eu não era meu pai nem minha mãe. Não importava o quanto a situação parecesse romântica para ele, eu só conseguia pensar nos trinta e cinco garotos – barulhentos, intragáveis, fedidos – que estavam prestes a invadir minha casa. Nada disso soava “mágico”.
— Temos um acordo — ele disse finalmente.
Levantei praticamente pronta para sair dançando.
— Mesmo?
— Mesmo.
Estendi o braço e selei meu futuro com um único aperto de mão.
— Obrigada, pai.
Deixei a sala antes que ele pudesse ver o tamanho do meu sorriso. Eu já vinha planejando como fazer a maioria dos garotos sair por livre e espontânea vontade. Eu podia intimidá-los quando necessário ou pensar em maneiras de tornar o ambiente do palácio nada acolhedor. Também contava com uma arma secreta: Osten. Dos meus irmãos, ele era o que mais aprontava, então não seria difícil convencê-lo a me ajudar.
Me parecia admirável que um garoto comum se sentisse preparado o bastante para enfrentar o desafio de se tornar príncipe. Mas ninguém me amarraria antes do tempo, e eu ia garantir que esses pobres coitados soubessem bem onde tinham se metido.


A temperatura estava baixa no estúdio, mas assim que as luzes se acenderam parecíamos estar em um forno, tamanha a diferença que a iluminação fazia. Eu já tinha aprendido havia alguns anos a escolher roupas frescas para o Jornal Oficial, de modo que meu vestido para aquela noite deixava meus ombros à mostra. Meu visual era elegante, como sempre, mas nada que me fizesse desmaiar de calor.
— Esse vestido é perfeito — minha mãe comentou enquanto endireitava os babados das mangas. — Você está linda.
— Obrigada. Você também.
Ela sorriu e continuou ajeitando minha roupa.
— Obrigada, linda. Sei que está um pouco apreensiva, mas acho que uma Seleção fará bem a todos. Você passa muito tempo sozinha, e teríamos que pensar nisso cedo ou tarde, e…
— As pessoas ficarão contentes. Eu sei.
Tentei disfarçar o sofrimento na minha voz. Tecnicamente, as filhas da realeza já não eram mais oferecidas em troca de alianças políticas… mas a sensação não era muito diferente. Será que ela não percebia isso?
Seus olhos passaram do meu vestido para meu rosto. Algo naquele olhar me dizia que ela sentia pena.
— Sei que isso parece um sacrifício. E é verdade que, quando levamos uma vida pública, há muitas coisas que fazemos não porque queremos, mas porque devemos.
Ela engoliu em seco antes de continuar:
— Mas foi assim que encontrei seu pai, fiz minhas amigas mais íntimas e aprendi que era mais forte do que imaginava. Sei do seu acordo com seu pai. Se tudo isso acabar sem que você encontre a pessoa certa, que assim seja. Mas, por favor, permita-se viver a experiência. Melhore, aprenda. E tente não nos odiar por pedirmos isso de você.
— Eu não odeio vocês.
— Mas considerou essa possibilidade quando fizemos a proposta — ela disse com um sorrisinho. — Não é mesmo?
— Tenho dezoito anos. Meus genes estão programados para brigar com meus pais.
— Não ligo para uma boa briga desde que no final você ainda tenha consciência do quanto eu amo você.
Dei um passo adiante para abraçá-la.
— E eu amo você. Juro.
Ficamos abraçadas por um tempo. Então ela me soltou e foi procurar meu pai, não sem antes alisar de novo meu vestido, garantindo que minha aparência continuasse impecável. Em seguida, fui tomar meu lugar ao lado de Ahren, que acenou com as sobrancelhas para me provocar.
— Está linda, irmãzinha. Praticamente uma noiva.
Segurei a saia e sentei graciosamente.
— Mais um comentário e raspo a sua cabeça enquanto você estiver dormindo.
— Eu também amo você.
Tentei não sorrir, mas fracassei. Ele sempre sabia o que dizer.
O lugar estava cheio de residentes do palácio. Madame Lucy estava sozinha, pois o general Leger estava em serviço, e o Sr. e a Sra. Woodwork sentaram atrás das câmeras com Kile e Josie. Eram os únicos filhos do casal, e eu sabia que a madame Marlee significava o mundo para minha mãe, então guardava para mim mesma a opinião de que os filhos dela eram absolutamente terríveis. Kile não era tão intragável quanto Josie, mas, mesmo depois de todos esses anos de convivência, jamais chegamos perto de ter uma conversa interessante. Esperava que nunca acontecesse, mas se algum dia eu tivesse um problema grave de insônia, poderia contratá-lo para ficar falando ao lado da minha cama. Resolveria o problema. E Josie… Eu não tinha palavras para descrever como aquela menina era deplorável.
Os conselheiros do meu pai começaram a aparecer, saudando-nos com uma reverência antes de sentar. Havia apenas uma mulher no ministério de meu pai, a Srta. Brice Mannor. Ela era linda e delicada, e nunca entendi direito como uma pessoa tão discreta conseguia se manter firme na arena política. Jamais a ouvi elevar a voz ou ficar nervosa, mas as pessoas a escutavam. Os homens não me escutavam a não ser que eu fosse rígida.
Contudo, sua presença me deixou curiosa. O que aconteceria se eu, quando rainha, escolhesse apenas mulheres para formar meu ministério?
Seria uma experiência interessante.
Os ministros e conselheiros fizeram seus pronunciamentos e relatórios. Então, finalmente, Gavril voltou-se para mim.
Gavril Fadaye tinha cabelos grisalhos penteados para trás e um rosto muito bonito. Ultimamente vinha falando sobre aposentadoria, mas depois de um anúncio daquela magnitude, precisaria aguentar mais um pouco.
— Esta noite, Illéa, para encerrar nosso programa, temos uma notícia empolgante. E não há ninguém melhor para comunicá-la do que nossa futura rainha, a bela Eadlyn Schreave.
Com um gesto grandiloquente, ele estendeu a mão na minha direção, e eu abri um largo sorriso enquanto cruzava o palco acarpetado, em meio ao aplauso comedido.
Gavril me deu um breve abraço e um beijo em cada bochecha.
— Bem-vinda, princesa Eadlyn.
— Obrigada, Gavril.
— Agora preciso ser honesto. Parece que foi ontem que anunciei seu nascimento e de seu irmão, Ahren. Não acredito que faz mais de dezoito anos!
— É verdade. Já somos grandes — disse, virando-me para minha família e trocando alguns olhares calorosos.
— A senhorita está a ponto de fazer história. Penso que Illéa inteira está ansiosa para ver o que fará daqui a alguns anos, quando se tornar rainha.
— Com certeza será um período empolgante, mas não sei ao certo se quero esperar tanto para fazer história. — Dei-lhe uma cotovelada brincalhona e ele fingiu surpresa.
— Bom, então por que não nos conta o que tem em mente, Alteza?
Endireitei os ombros diante da câmera C e sorri antes de começar.
— Nosso grande país passou por muitas mudanças ao longo dos anos. Apenas durante o reinado de meus pais, assistimos às forças rebeldes no interior do país praticamente se extinguirem e, embora ainda enfrentemos desafios, as linhas imaginárias do sistema de castas não dividem mais nosso povo. Vivemos uma era de liberdade extraordinária, e esperamos ávidos que nossa nação alcance todo o seu potencial.
Me lembrei de sorrir e falar articuladamente. Os anos de aulas sobre como falar e me dirigir ao público incutiram em mim a técnica adequada, e eu sabia que meu discurso tocava cada um dos pontos necessários.
— E isso é ótimo… mas ainda sou uma garota de dezoito anos.
A pequena plateia riu. Continuei:
— Acaba sendo meio chato passar a maior parte do dia dentro do escritório com meu pai. Sem ofensas, Majestade — acrescentei, voltada para ele.
— Tudo bem — ele respondeu.
— Assim, decidi que é hora de mudar o ritmo. É hora de buscar não só um colaborador que trabalhe comigo nesta exigente tarefa, mas um parceiro que caminhe ao meu lado ao longo da vida. Para tanto, espero que Illéa me conceda meu desejo mais profundo: uma Seleção.
Os conselheiros soltaram exclamações de surpresa e começaram a cochichar. Era perceptível o choque na expressão dos funcionários. Ficou evidente que Gavril era o único que sabia de tudo de antemão, coisa que eu não esperava.
— Amanhã, cartas serão enviadas a todos os rapazes elegíveis de Illéa. Eles terão duas semanas para decidir se gostariam de competir pela minha mão. Tenho consciência, naturalmente, de que trilharemos um caminho desconhecido. Jamais tivemos uma Seleção comandada por uma mulher. E ainda que tenha três irmãos, estou ansiosa para encontrar mais um príncipe para Illéa. Espero que todo o país celebre comigo quando isso acontecer.
Acenei levemente com a cabeça e voltei ao meu lugar. Minha mãe e meu pai irradiavam orgulho. Tentei me convencer de que essa reação bastava, embora continuasse apreensiva. Não conseguia parar de pensar que faltava alguma coisa, que havia um buraco na rede sobre a qual eu planejava cair.
Mas não havia o que fazer. Tinha acabado de saltar pela janela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário